sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Resenha - A Elite da Tropa

A invisível guerra civil brasileira

Elite da tropa

Luis Eduardo Soares, Andre Batista e Rodrigo Pimentel – 2006.



Elite da tropa procura esclarecer por meio da ficção, como se articulam os principais elementos que contribuem para a manutenção do quadro caótico da segurança pública no Rio de Janeiro. Mesmo com narrativas fictícias apresentadas pelo personagem de um integrante da política, Elite da tropa é resultado de uma combinação das experiências dos autores na corporação policial.

O livro foi escrito por Luiz Eduardo Soares, antropólogo, que atuou na gestão da segurança pública como coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do governo do Rio de Janeiro entre 1999 e 2000, e como secretário nacional de Segurança Pública em 2003; de André Batista e Rodrigo Pimentel que, durante os anos 1990, integraram o Batalhão de Operações Policiais Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro (Bope).

No livro, é apresentado um panorama um tanto sombrio da segurança pública no Rio de Janeiro, explicitando que as "políticas" de segurança não prescindem da violência policial no trato da criminalidade, que a corrupção está profundamente arraigada nas instituições e que existe uma forte relação entre violência e corrupção. Se inicia com um conjunto de 22 episódios nos quais se sobressai o padrão violento de atuação policial nas áreas pobres do Rio de Janeiro, para em seguida detalhar a estreita relação entre o poder público e o crime organizado, sustentada por uma rede de corrupção que envolve figuras políticas de diferentes níveis, empresários, policiais e traficantes, sendo assim, dividido em duas partes.

No "Diário de guerra", primeira parte, narra-se uma variação de episódios de incursões policiais, sobretudo do Bope, nos morros cariocas. Nessas incursões, destaca-se a violência policial como padrão de atuação no combate à criminalidade – violência policial aqui entendida como o uso arbitrário, truculento e ilegal da força pelos agentes policiais. Se, para aqueles que dedicam uma leitura mais atenta aos noticiários policiais, esses casos não constituem novidade, para quem está alheio à realidade da relação entre polícia e população pobre o livro traz uma forte denúncia.

O Batalhão de Operações Especiais é apresentado como uma força de guerra treinada para atuar na segurança pública, uma tropa de guerra urbana destinada a intervir em territórios onde o trabalho policial de investigação e prevenção, pautado pela normalidade democrática, praticamente não existe. Se, por um lado, a cultura organizacional do Bope condenava a corrupção e cultivava o sentimento de honestidade entre os seus integrantes, por outro, valorizava o recurso à violência como meio de atuação policial.

A violência policial relatada compreende desde "pequenas" crueldades e espancamentos até tortura e execução sumária de supostos delinqüentes, e não raramente é orientada pelo racismo. A tortura é empregada recorrentemente como castigo ao infrator ou como método de trabalho policial: nesse caso, trata-se de infligir sofrimento ao outro por meio de técnicas com objetivo de obter confissões. E para tanto, os policiais contam com a autorização de seus superiores e a conivência dos pares, até mesmo da corregedoria.

São raros os momentos em que o narrador demonstra ambigüidade ao tratar de temas tão espinhosos como tortura e execuções de pessoas. Mas, assim como na guerra, o uso desmedido da força é validado por meio da desumanização do inimigo, invariavelmente um "marginal" que "deve" ser eliminado. A capacidade de o indivíduo julgar e se contrapor à lógica em uso da corporação parece não resistir aos primeiros tempos da carreira: acostuma-se.

Na segunda parte, vamos dizer assim, ao contrário da primeira, narra uma única história, ou uma história única, focada no uso político das polícias em um intricado jogo de interesses. O envolvimento de políticos e dos comandos das forças policiais com as atividades ilícitas faz que o mundo público e o privado se confundam de tal maneira que a leitura acaba demandando um esforço maior, dada a estranheza das situações relatadas.

O episódio começa com o resgate de um traficante por policiais, a mando do delegado chefe da polícia civil do Rio de Janeiro. O objetivo da ação não era prendê-lo, mas obrigá-lo a retomar suas atividades no tráfico de drogas da Rocinha, onde os negócios eram altamente rentáveis por não envolver o trabalho de crianças ou conflitos violentos e, assim, não atrair a atenção das autoridades. O dinheiro arrecadado com o tráfico seria usado pelo delegado para saldar suas dívidas de campanha a deputado estadual. Entre os personagens da primeira parte do livro que reaparecem nessa história, está Santiago, um policial militar íntegro ao entrar na polícia, que se corrompeu quando passou a trabalhar na capital. Participa de esquemas de extorsão, usa da violência e abusa de sua prerrogativa de policial para praticar atividades ilegais.

É possível dizer que o grande mérito desse trabalho é o fato de a denúncia, dessa vez, ter partido de policiais que participaram ativamente do cotidiano da segurança pública em uma grande cidade. E mais ainda, de enfatizar que a corrupção é um problema generalizado, envolve altos escalões e não está restrita aos praças e policiais que operam nas ruas. Se, por um lado, os policiais de baixo escalão se envolvem em ilegalidades cotidianas, por outro, à medida que sobem na hierarquia policial, mais complexas, organizadas e rentáveis se tornam as associações criminosas. Denúncias como essa, até então feitas por órgãos externos, tais como organizações de defesa dos direitos humanos, jornalistas ou acadêmicos, ganham outra dimensão quando seus próprios atores vêm a público expor o que as "políticas públicas" impõem aos agentes da segurança e à população. O livro dá os detalhes de uma realidade espinhosa: a ilegalidade é fonte de lucro para os policiais envolvidos, juntamente com outros atores, em redes de corrupção com origem em negócios de transporte clandestino, serviços de segurança privada, jogos eletrônicos, jogo do bicho e transações com traficantes.

Outro aspecto que se sobressai são os diferentes propósitos da truculência da polícia que ora funciona como procedimento de "limpeza social" para eliminar os bandidos, ora funciona como meio de resolução de disputas entre quadrilhas que têm policiais entre os seus integrantes. Entre as mortes causadas pela polícia, diariamente publicadas nos jornais, fica difícil identificar o que realmente é resultado de um confronto inevitável daquilo que é resultado de disputas que não atendem aos interesses civis democráticos. Tal "política de segurança" delineia um perfil violento às ações policiais, facilita a corrupção entre seus agentes, não pune o mau profissional e oferece ao bom policial no mínimo a opção de conivência. Qual é o resultado dessa lógica? A violência policial empregada nos morros, em princípio considerada eficiente, não rompe com a dinâmica do crime organizado cuja centralidade passa longe das favelas. Assustador é o fato de que o livro não remete apenas à situação da segurança pública no Estado do Rio de Janeiro. O caos na gestão dos recursos materiais e humanos no sistema de segurança e justiça criminal e a tênue fronteira entre o mundo da legalidade e da ilegalidade parecem ser a regra e não a exceção no contexto brasileiro.

O desejo dos três autores é de que um dia a reconciliação entre a sociedade e polícia, que tem sua imagem e credibilidade tão desgastadas atualmente, seja possível. Para que esse processo se inicie, consideram necessário, primeiramente, encarar a verdade e reconhecê-la, sem hipocrisia, mesmo que seja pela mediação da ficção. No entanto, ir além da ficção e reconhecer essa verdade no nível institucional e social em busca de mudanças é o que parece ser o mais complicado, visto que o custo político e mesmo pessoal pode ser altíssimo. Os poucos que tentam se aventurar nessa direção são eliminados, derrubados ou desmoralizados. Enquanto isso, o cidadão comum figura como mero espectador prostrado diante dos eventos.

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